O senhor tem origem humilde?
Papai era ferroviário. Entrou na Rede Mineira de Viação aos 16 anos e, mais tarde, foi transferido para Santa Rita. Quando viemos de Borda da Mata, eu tinha 4 anos. Frequentei pela primeira vez a escola aos 6 anos. No último ano do primário, a minha mãe me matriculou na Escola Santa Terezinha, que ficava onde hoje é o Edifício Mendonça. Tal escola era particular e, até o terceiro ano, minha mãe pagava. Na ocasião, não sei como ela conseguiu que Sinhá Moreira custeasse meus estudos. Dali pra frente, comecei a estudar por conta dela. Depois do quinto ano do primário, continuei até a quarta série na Escola Normal e trabalhei com o senhor Vladas. Eu tinha 14 anos e tomava conta do bar que ficava em um porão em frente ao cinema. Eu saía da escola e servia algumas figuras como Clarivaldo, Zé Pipoca e outros frequentadores que ficavam lá até as duas da manhã. No outro dia, às sete horas da manhã, estava eu na escola. Ainda assim, era sempre o primeiro ou o segundo da turma.
Quando o senhor tomou contato com a aviação?
Em outubro de 1953, o Chico Moreira fez um campo de aviação nas terras do pai do Zizinho. Ele comprou com o dinheiro dele o terreno e pediu ao Chiquito Garcia que criasse uma pista de 1300 metros. Ao terminar o serviço, disse que só entregaria a pista de pouso se o Ministro da Aeronáutica viesse inaugurar. Para isso, pediu ao genro, o deputado Bilac Pinto (da UDN) que fizesse o convite. O deputado foi ao ministério e conversou com o chefe de gabinete sobre a possibilidade de Nero Moura vir para Santa Rita. Bilac Pinto esperou uma semana, dez dias, duas semanas, e resolveu ligar ao gabinete. Ele soube que teria a resposta em dois dias, pois o ministro teria uma reunião muito importante com o presidente, antes disso. Em conversa com Getúlio Vargas, Nero Moura comentou sobre uma cidadezinha chamada Santa Rita que havia feito um campinho e que pedia a presença dele. O presidente falou: “Em Santa Rita tem um deputado chamado Bilac Pinto. Vá em homenagem a ele!” E Nero respondeu: “Mas ele é da UDN!” (partido de oposição). E Vargas disse: “Sim, mas é o deputado mais sério que existe no partido. Esse inimigo eu respeito!”
No dia 12 de outubro, pousou em um avião Douglas C47 e vieram mais dois aviões T6. Chegou às 10 horas com as escolas todas na rua, tremulando bandeirinhas. O ministro almoçou na casa da Sinhá e, às duas horas da tarde, voltou para o Rio. Ele deixou dois chefes de gabinete para assinarem a documentação de recebimento do campo de aviação e sua transferência para a prefeitura. Às seis e meia da tarde, Dona Maria José me chamou e pediu para que reunisse meus colegas para conversar com a Sinhá. Às sete horas, chegamos lá e fomos apresentados como estudantes. Veja só como são as coisas… Sinhá Moreira apresentou aqueles capitães vindos com o ministro que contaram a ela que a aeronáutica havia aberto uma escola que preparava alunos para a Academia da Força Aérea. A escolha era feita por concurso e as provas seriam em São Paulo. O capitão perguntou se gostaríamos de fazer a prova e dissemos que sim.
Alguns dias depois, Sinhá Moreira nos falou: “O exame será no dia 5 de janeiro e está tudo acertado. Já comprei as passagens para vocês irem às sete da manhã.” Fomos de jardineira, debaixo de um temporal, passando por Cachoeirinha e Ouros para chegar, às cinco da tarde, em Paraisópolis. De lá, embarcamos em um ônibus que nos levaria até São José dos Campos. Dez da noite pegamos outra baldeação que só chegou ao destino por volta da meia noite. Quando botamos os pés em São Paulo, havia um senhor, com dois carros pretos, esperando a gente. Ele tinha uma lista com os nomes de cada um de nós e foi chamando um a um. O homem era ninguém menos que Walter de Carvalho, o gerente do Banco Nacional na capital paulista. Dona Sinhá tinha pedido que ele nos recebesse.
E as provas?
As provas eram enormes. Tivemos exames a semana inteira, alojados na Base Aérea: Português, ciências, história, geografia, inglês e Francês. Eram 1800 alunos para 120 vagas. Ao terminar a seleção, debandamos para Santa Rita e ficamos esperando o resultado. Passou janeiro e nada. No dia 5 de fevereiro, o papai estava na estação de Santa Rita, quando o Lima, que era chefe dos Correios, disse: “Alcides, você viu o jornal? O Hermes passou!” Eu deveria ter me apresentado no dia dois de janeiro e fui correndo falar para a Dona Sinhá. Ela perguntou como é que eu não tinha visto e eu contei que o telegrama devia ter se extraviado.
Sim. Quando cheguei a São Paulo, fui fazer um exame de saúde na Policlínica da Aeronáutica e um dos médicos disse que eu deveria fazer uma operação de amígdala. Eu disse a ele que se me operassem eu toparia e fui para um hospital no Campo de Marte, onde o cirurgião era o próprio médico que me examinou. Na época, eles colocavam um laço de aço na amígdala e cortavam. Passei 10 dias no hospital. A comida era pão, água e leite. Perdi 10 quilos e saí de lá um caco.
Depois disso, teríamos que fazer um exame psicotécnico no Rio. Estava operado, sem um tostão no bolso e fiquei desesperado quando soube que teria que viajar sem dinheiro. Decidi ir ao Banco Nacional e falar com o doutor Walter. Quando cheguei, vi que era um banco monstruoso. Ao me dirigir ao balcão pedi para falar com ele:
– Eu queria falar com o gerente.
– Quê?
– O gerente não é o Walter? Queria falar com ele…
– Você é de onde?
– Sou da terra dele. Ele me esperou na rodoviária outro dia para fazer o exame da aeronáutica.
Quando disse que fiz prova na aeronáutica, um homem sentado em um banco, ao lado do guichê, perguntou: “Você está indo estudar em Barbacena? Eu sou sargento da aeronáutica! Sirvo aqui no quartel na Zona F.” E eu disse: “Eu tô hospedado lá! Comendo o pão que o diabo amassou!” Ele riu e falou: “É assim mesmo… Para quem está começando é desse jeito. E você está querendo falar com o gerente? Saiba que estou esperando há 3 horas e nada! Ninguém fala com ele fácil, não!” Nesse momento, eu pedi à a-tendente para dizer que era o Hermes Moreira. Sabe o que aconteceu? Uma porta enorme de carvalho se abriu, o Walter saiu e gritou: “Vem cá, menino!” O sargento olhou pra mim com uma cara assustadíssima. Eu disse que precisava ir ao Rio de Janeiro fazer exame psicotécnico e que não tinha nenhum dinheiro, ele perguntou quanto eu precisava e eu falei que queria um dinheiro para ficar no bolso, uns cinquenta mil Réis. Sabe quanto ele me deu? Quinhentos mil Réis! Era muito dinheiro! Valeria uns cinco mil Reais, hoje. Eu perguntei como faria para pagar e ele disse para deixar com ele. Nunca mais vi a conta.
Eu fui para o Rio de Janeiro, fiz o psicotécnico e viajei para Barbacena, onde estudaria. Papai só me viu em maio, quando foi a Belo Horizonte e passou para me visitar. Estudei o primeiro e o segundo ano do segundo grau em Barbacena. No terceiro, nos transferiram para a escola de aeronáutica, no Rio de Janeiro. Nessa época, saí como aspirante e iniciei o curso na escola de aeronáutica, ali mesmo. De lá, fui para Fortaleza e voei nos primeiros caças que havia no mundo. Éramos nove pilotos de caça e, ao terminar o curso em Fortaleza, voltei para o Rio como instrutor. Na época, encontrava muito com a Sinhá Moreira que estava no Rio de Janeiro para fazer um tratamento de câncer. Uma noite, liguei para a casa da Dona Carminha e pedi para visitar a irmã. Saí da casa de um colega e levei uma amiga, noiva dele. Fomos ao encontro de Sinhá Moreira. Dona Carminha morava em uma casa na Vieira Souto. Hoje, no local, está construído um prédio e diversos santa-ritenses têm apartamento lá. Quando chegamos, Bilac não se encontrava. Estavam apenas Carminha e Sinhá. A sala era uma penumbra. Ao começarmos a conversar eu disse que estava indo embora e que estava muito alegre e ela quis saber das minhas peripécias. Conversamos das oito às onze da noite. Na despedida, quando nos levou até o portão, Sinhá olhou para a minha amiga e perguntou: “É noiva?” Eu disse que não e ela respondeu: “Você tem que se casar com uma moça de Santa Rita, viu?”. Três meses depois, Sinhá faleceu.
Um pouco da carreira de Hermes Moreira, nos anos que se seguiram:
Em 65, Hermes Moreira foi para Pirassununga, onde trabalhou como chefe de manutenção e instrutor. Casou-se no mesmo ano com Regina, em Santa Rita – com quem teve três filhas. Conta-se que, no dia da cerimônia, um piloto que veio assistir ao casamento, teria passado com seu avião por baixo da ponte velha. Em 1976, Hermes fez o curso de Estado Maior no Rio de Janeiro. Em 1978, tornou-se diretor de ensino na Base Aérea de São Paulo. Em 1979, passou a comandar a Base Aérea de BH e, três anos mais tarde, foi nomeado subcomandante da Base de Natal. Em 1984, fez o curso de política estratégica aeroespacial na Escola do Estado Maior e, no ano seguinte, tornou-se vice-chefe da aeronáutica no gabinete presidencial. Com a morte do presidente Tancredo Neves, viajou com José Sarney por dois anos, até ser designado Adido da Aeronáutica em Paris, onde morou até 1989. No retorno ao Brasil, tornou-se Vice-Chefe da Secretaria de Inteligência da Aeronáutica e Chefe do Centro de Comunicação Social. Em 1990, o presidente da República o nomeou Brigadeiro. Dois anos depois, foi subchefe do ENFA, hoje Ministério da Defesa. De 92 a 93, com a patente de Major Brigadeiro, comandou o 5º Comando Aéreo Regional, em Porto Alegre. Em 1996, mudou-se para Brasília onde ocupou o cargo de subchefe de ensino aéreo. Após 46 anos de FAB, ocupando alguns dos mais altos postos da carreira militar, em 1997, Hermes Moreira entrou para a reserva e voltou para Santa Rita do Sapucaí, onde viveu até os seus últimos dias.