Todos conhecem a trajetória extraordinária do habitante de Santa Rita do Sapucaí que partiu para se tornar Ministro do Supremo Tribunal Federal por duas vezes, ministro das relações exteriores e uma das personalidades mais respeitadas do meio jurídico nacional e internacional. O que muitos não conhecem é a sua infância e os primeiros passos para a personalidade que viria a ser tornar, um dia. Acompanhe esta entrevista incrível, concedida com exclusividade para o jornal Empório de Notícias.
Poderia nos contar sobre a sua vinda e sobre os seus primeiros anos em Santa Rita?
Eu nasci em Cristina, em janeiro de 1944. Em junho daquele mesmo ano, a minha família se mudou para Santa Rita do Sapucaí e se instalou em uma casa que ainda existe e que foi comprada pela família Toledo. Uma residência ao lado do Supermercado Alvorada. Algum tempo depois, no ano novo de 1947, o meu irmão morreu de meningite, aos 9 anos. Aquilo foi um grande golpe para os meus pais e a minha mãe não quis permanecer na casa onde ele morreu. Eu tinha somente três anos quando nos mudamos para uma instalação provisória, na rua da ponte. Logo depois, o papai comprou uma casa do Frederico Adami, de onde estava saindo o locatário, o senhor Vono, de mudança para Belo Horizonte. Desde então, passamos a viver em uma residência localizada à avenida Delfim Moreira, 142. De lá, não saímos mais.
Qual foi a primeira escola em que o senhor estudou?
Estudei, primeiro, na Escola Santa Terezinha, da Dona Mariquinha Souza, tia da Dona Carminha, da Dona Maria José e da Dona Stela. Lá, fiz o primeiro e o segundo ano do curso primário. Estava localizada na praça onde, hoje, é o Edifício Mendonça. O terreno era em L e também dava saída para a rua Cel. Francisco Moreira, Eu sempre chegava por aquela rua que dava acesso ao pátio. Dali, a escola se transferiu, por um breve período, para a região do Clube Santarritense, mas fechou em seguida.
Para qual escola o senhor se transferiu?
Eu me matriculei no Grupo Escolar Delfim Moreira, Grupão, no alto do morro. Lá, eu fiz o terceiro, o quarto e o quinto ano com as professoras, Dona Lourdes Ribeiro, Dona Márcia Longuinho e uma professora chamada Zélia, de uma família de Ouro Fino. No quarto ano, quando Dona Márcia tirou Licença Maternidade, assumiu Dona Marlene Garcia, a mais jovem das irmãs Garcia.
Como prosseguiu com os estudos?
Terminando o primário, fui interno do Liceu Salesiano de Campinas, aos 11 anos. No ano seguinte, estudei no Colégio São Joaquim, de Lorena. Depois, voltei para Santa Rita e fiz a terceira e a quarta série ginasial, na escola da Família Del Castillo. O diretor era o professor Dedé. Tínhamos como professores Dona Cidália, José Caponi e vários outros dos quais eu tenho as melhores lembranças. Recordo que o professor Samuel Bruce tinha falecido naquela época. Dona Carmélia Vono ensinava Francês, Dona Zininha Mendes ensinava Ciências, dona Cidália era professora de inglês e tivemos muitos outros professores de memória saudosa. Terminado o ginasial, estudei um ano no internato Marista, em Poços de Caldas, e fui para Belo Horizonte, em definitivo. No Colégio Arnaldo, terminei o Colegial, que se dividia em Científico e Clássico. Fiz o Científico, pois a minha família esperava que eu cursasse Medicina, opção dos primos da minha geração, mas achei que esta profissão não daria muito certo para mim. Fiz o vestibular de Direito, cursei a federal e terminei em 1966. Ao me formar, passei um bom tempo na França fazendo doutorado e, quando voltei, fui para Brasília trabalhar como assessor do Ministro Bilac Pinto, no Supremo, em uma época em que cada Ministro tinha somente um único assessor. Atuei com ele por dois anos e, ao terminar o concurso para Procurador da República, fui aprovado, tomei posse e fui designado para atuar junto ao Supremo. Nunca atuei na primeira instância. Passei por vários estágios na minha carreira, já era Subprocurador Geral da República, quando – em 1983 – completando 39 anos, fui nomeado Ministro do Supremo. Era a segunda parte do governo Figueiredo onde, quem decidia pelo presidente, era o Ministro Leitão de Abreu, a quem eu era muito ligado por causa do meu trabalho anterior. De lá para cá, as coisas mudaram um pouco quando – 7 anos mais tarde – deixei o Supremo para assumir o Itamaraty (como Ministro das Relações Exteriores). Permaneci no cargo por dois anos e pouco. Ao terminar, fui reconduzido ao Supremo. Este foi o único caso de duas nomeações de uma mesma pessoa para o Supremo.
O senhor considera que a educação que recebeu em Santa Rita contribuiu para a sua formação e para o destaque na carreira?
A minha educação foi toda feita em Santa Rita. Tudo o que aprendi, até a minha idade adulta, aconteceu nesta cidade, com alguns intervalos em internatos. Posso dizer que as lições mais marcantes que tenho de escola, no primário e no ginásio, foram com as professoras da cidade.
O senhor lembra algumas passagens envolvendo os seus tempos de escola?
No Grupo Escolar, eu não era muito aplicado e era muito levado em matéria de comportamento. Havia vários alunos mais aplicados do que eu – como o Flávio Carvalho – e a maioria tinha melhor comportamento. Apesar disso, a diretora da escola, Dona Maria Raposo (irmã de Dona Stelinha, tia do Paulo Renato e da Cristina) e a vice-diretora, Dona Ordalina de Faria Costa, me escolhiam sempre para ser orador das solenidades e para aparecer em palcos, dentro e fora do Grupão. Era como um porta-voz da escola e guardo muitas lembranças boas daquela época. Me recordo que, quando terminei o ginásio, devia sair da cidade por algum tempo, mas vários colegas da minha turma foram seduzidos pela ideia do curso de eletrônica. Em vez de passar para o colegial, resolveram fazer o curso técnico. Naquelas circunstâncias, pessoas como o meu primo, Luiz Roberto Kallás, Ronaldo Carvalho e vários outros preferiram fazer o curso da ETE. A Dona Sinhá tinha acabado de construir a escola com ajuda do Ministério da Marinha e escalou para reger a parte científica do ensino os padres Jesuítas. Vieram os padres Alejandro Caballero, Javier Alonzo e vários outros. Dentre os jesuítas, quem mais brilhou, em um momento posterior à fundação, foi o Padre José Carlos de Lima Vaz, que terminou como Bispo de Petrópolis. Ele nunca esqueceu Santa Rita e jamais deixou de preservar a sua fidelidade e as memórias que tinha de nossa cidade.
A minha fase de ginásio e a convivência no curso colegial são muito bonitas. Na própria faculdade de direito, que cursei em Belo Horizonte, tive colegas de Santa Rita. Estudei com o Caio Nelson Vono de Azevedo, com o Antônio Lázaro da Silva (que casou com a Hebe De Marchi), com o desembargador José Kallás e com alguns outros amigos do sul de Minas.
O Caio Vono me contou que vocês ainda promovem reuniões entre amigos daqueles tempos…
São encontros que promovemos, durante a Festa de Santa Rita, com pessoas que fizeram outros cursos, mas que são de gerações próximas. Todos faziam parte da mesma turma e nós compartilhamos lembranças de uma época mais romântica do que a de hoje. Uma época mais idealista, menos pragmática, em que as relações sentimentais eram infinitamente mais contidas, senão patrulhadas de todos os modos. Nós vemos a situação dos jovens de hoje e morremos de inveja! Sempre comentamos sobre as limitações que a nossa geração enfrentou, já que éramos mais românticos, mas era bem mais difícil ser jovem naqueles tempos.
Para se ter uma ideia de como eram os costumes na época, até algumas canções natalinas que cantávamos nos eventos e que tinham algum elemento romântico, eram censuradas. Na canção “Jingle Bells”, por exemplo, havia um trecho que dizia “hoje a noite é bela, vamos à capela, juntos eu e ela, felizes a cantar”. Alguém achou que a expressão “juntos eu e ela” era muito carnal e trocou o trecho por “sob a luz da vela”. Várias outras canções eram censuradas, o que lembra aquele filme chamado Cinema Paradiso, em que o padre cortava as cenas de beijos dos filmes. Quando lembro essas coisas, acho hilariante pensar que viam aspectos carnais em frases tão inocentes.
Nos tempos de carnaval o senhor tomava partido para um dos blocos?
Eu sempre fui Democráticos e cheguei a desfilar, entre 1959 e 1961. Desfilei no ano em que o Democráticos saiu de Sonho Oriental. Nós éramos torcedores muito convictos, mas tínhamos uma grande admiração pelo Ride Palhaço.
Quais são as lembranças que o senhor tem da rua da ponte?
Havia os italianos, os árabes e os libaneses. Tinha o Jacques Bressler, o Juninho lituano e várias famílias estrangeiras. Lembro-me que o Campeão do Sul, do senhor Salvador Caruso, vendia jornais, revistas e loterias. Durante os anos da minha infância, eu estava lá todos os dias, comprando revistas. Era uma época em que havia revistas em quadrinhos muito educativas! Havia uma chamada Álbum Gigante, outra chamada Epopeia, Ciência em Quadrinhos e algumas de mistérios e aventuras policiais. Aprendia-se muito através dos quadrinhos, em uma época que não se dispunha dos recursos que temos hoje, através da internet. A agência Campeão do Sul também oferecia muitos livros, mas a especialidade era material noticioso e revistas infantis e juvenis, em quadrinhos. Foi um dos lugares que eu mais frequentei em Santa Rita, além das bicicletarias. Nos primeiros anos de ciclismo, as crianças ainda não tinham bicicleta própria e nós alugávamos, principalmente na bicicletaria do senhor Paduan, na rua da ponte. São lembranças muito bonitas e enriquecedoras.
O senhor comentou que os jovens não tinham tanta liberdade naqueles tempos…
Se a nossa geração foi contida em matéria de costumes, pelos nossos pais, isso também nos ensinou a ter disciplina, ao longo da vida. É como acontece nas escolas militares: por um lado, elas bloqueiam muitas possibilidades em matéria de pensamento livre, mas ensinam uma disciplina que dá ao jovem alguma vantagem na administração da própria vida, na fase adulta.
Eu vi um vídeo em que o senhor declamava uma poesia, durante a Festa de Santa Rita.
Isso aconteceu em 1957, no V Centenário da Morte de Santa Rita. Lembro-me da Noite Libanesa e de várias outras noites organizadas por aquelas senhoras, das diversas colônias. Lembro que houve uma Noite Americana sem que tivéssemos nenhum descendente norte-americano em Santa Rita. Outras noites foram organizadas por colônias fortes como a italiana, a libanesa, espanhola e portuguesa. Fazia muito frio e as apresentações aconteciam depois do leilão, conduzido pelo senhor Antônio Raposo e por outros leiloeiros menos veteranos. Os leilões aconteciam do lado direito de quem sai da igreja. Ali ficava um quiosque montado para este fim e havia muitas coisas bonitas. Além dos cartuchos, havia salgados, quartos de leitoa, frangos recheados e crocantes. Eram coisas muito gostosas e difíceis de encontrar! Também havia cestas de doces muito bem feitas e de boa qualidade. Lembro que era preciso acabar o leilão para começarem os shows, encenados mais por crianças. Um ou outro adulto, como o Farid Abrahão Kallás e a Dona Maria José Souza, conduzia o evento, mas as crianças é que se apresentavam. Numa daquelas noites, o leilão começou a demorar muito e a Dona Maria José Souza foi ao microfone e disse: “Eu faço aqui uma súplica aos distintos santa-ritenses para que arrematem logo as prendas porque que os artistas são crianças e estão tiritando de frio! O show tem que começar!” Eles, arremataram o que faltava em minutos e o evento teve início.
O senhor poderia recordar como eram algumas personalidades locais?
Eu me lembro que, na infância, aos 6 ou 7 anos, vi o coronel Francisco Moreira. Ele andava sempre a pé. Caminhava pelas ruas de Santa Rita e conversava com todo mundo que puxasse prosa com ele. Quando uma criança chegava para cumprimentá-lo ou observá-lo de perto, ele encarava isso com muita simpatia. Lembro, sílaba por sílaba, de um diálogo de um homem da roça conversando com ele e queixando-se da vida. O sujeito disse a ele: “Pois é, Seu Chico, o homem vale aquilo que tem no bolso!” O coronel enfiou a mão no bolso, tirou umas notas e respondeu: “Então eu valho trinta e sete Cruzeiros!” O homem ficou sem graça e falou: “Que isso, Seu Chico! O senhor vale muito mais!”
Dona Sinhá era uma grande dama e a minha mãe convivia muito com ela. Tenho muitas lembranças dela na organização de eventos e festas. Lembro dela se dirigir a mim e a outras pessoas. Também convivi de perto com ela durante as festas de inauguração da escola de eletrônica, quando o Ministro da Educação, Clóvis Salgado, esteve em Santa Rita. Penso que existe algo muito curioso sobre aqueles tempos… As sociedades provincianas eram muito prevenidas quanto à dissolução dos casamentos. O Brasil era um país não divorcista e continuou sendo até a reforma constitucional, do senador Nelson Carneiro, nos anos 70. As mulheres desquitadas eram vistas com preconceito, mas isso não acontecia em Santa Rita, já que dona Sinhá (que era UDN) e dona Lígia Capistrano (PSD), faziam parte das cúpulas dos dois partidos e eram desquitadas. Então, era impossível que qualquer membro da sociedade ou da classe média manifestasse preconceito ou hostilidade a alguém que tivesse o casamento desfeito pelo desquite.
Eu tenho grandes lembranças de santa-ritenses que já eram bem maduros na minha infância. Eles me deixaram uma impressão de fidalguia e de majestade cívica. Lembro de pessoas como o senhor Anísio Junqueira, o doutor Elpídio Costa, João Azevedo e o poeta Alfredo Marques de Azevedo. Este último, que escolhi como patrono na Academia Santa-ritense de Letras, não era um poeta bissexto como eu e nem escrevia somente de vez em quando. Era um poeta muito substancioso e que produziu uma obra densa. Tinha uma carreira judiciária em São Paulo, chegou a ser desembargador, mas a sua consagração foi através da poesia. Desde criança, eu o homenageava, decorando e declamando os seus poemas.
Conte-nos sobre os seus pais
Eu completei 18 anos, em janeiro de 1962. Em fevereiro, já na fase final da doença, o meu pai teve notícia de que eu havia passado no vestibular, chegou a festejar o acontecimento, mas morreu dias depois. Como a minha mãe disse na época, era muito cedo para eu ficar órfão de pai. Já ela, viveu 97 anos, muito bem vividos. Diferente do que aconteceu com ele, a minha mãe não enfrentou nenhum processo de degradação da saúde. Viveu lúcida e consciente, até o seu último dia. Era uma super mãe, consagrava muitos cuidados e atenções, mas era bastante controladora. Quando eu chegava a Santa Rita, dos 20 aos 60 anos, ela me dava um roteiro com os nomes de todas as pessoas que eu tinha que visitar e me falava, palavra por palavra, tudo o que deveria dizer a cada uma delas. Me parecia que ela achava que, se não ditasse tudo, eu só diria tolices e faria tudo errado! Isso me dá muita saudade porque, depois que ela morreu, ninguém mais fez o mesmo. Eu digo que a minha atual esposa tenta substituir a minha mãe nesse sentido, mas é uma brincadeira. Ninguém faria comigo o que a minha mãe fez, enquanto viveu. Ninguém teria intenção de ser tão educativo e corretivo.