Cartas de Lobato a Rangel

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Godorfredo Rangel

Quando Delfim Moreira foi governador de Minas Gerais, Santa Rita recebeu atenção especial. O interesse do estadista por sua terra era tamanho que escolhia excelentes profissionais para ocupar cargos públicos na cidade e designava renomados professores para lecionar nos estabelecimentos de ensino. Quando eram nomeados promotores e juízes para a cidade, sua equipe tinha o cuidado de designar profissionais que atuavam como professores nas horas vagas, para que pudessem lecionar nas escolas. Um deles, Godofredo Rangel, era grande amigo de Monteiro Lobato e foi considerado, alguns anos depois, um importante escritor da literatura brasileira.
No período em que esteve na cidade, de 1914 a 1918, o juiz trocou centenas de cartas com Lobato mas, infelizmente, suas correspondências não puderam ser publicadas. Rangel deixou registrado em testamento o desejo de que ninguém lesse as mensagens, fato que está prestes a ser mudado. Já Lobato publicou as cartas que enviou em dois volumes conhecidos como “A Barca de Gleyre”. Conheça agora a história de tais cartas e a influência que Santa Rita teve sobre duas grandes personalidades da nossa literatura.

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Monteiro Lobato

A história não registra outra troca de cartas entre escritores que durasse tantos anos como a ocorrida entre Monteiro Lobato e Godofredo Rangel, que se corresponderam de 1903 a 1948. A amizade começou na república “Minarete”, enquanto frequentavam o curso de Direito no largo de São Francisco, em São Paulo, e se estendeu através de uma assídua troca de correspondências, quando Lobato regressou a Taubaté, sua cidade natal. As cartas apenas foram silenciadas com a morte do criador do Jeca Tatu, ocorrida na cidade de São Paulo, em 4 de julho de 1948.

 

Veja os trechos da obra que cita Santa Rita:

Ao saber que Rangel adoeceu, Lobato ameniza:

“Veio, afinal, a carta contando sobre tua saúde. Na verdade, a doença que te arriou foi das mais sórdidas. Envenenamento pela nicotina! Puah! Sarrodepitose! Quanto à neurastenia, não compreendo como possa ser vítima de tal coisa um homem dotado da tríplice felicidade: ser casado, ser juiz e ser morador de Santa Rita do Sapucaí. Morar em Santa Rita… Imagino que seja um tonel de Diógenes, um tonel de paz perpétua num mundo feroz em luta permanente. Essa Santa Rita em que moras e onde dás a A o que é de A e a B o que é de B. Que mais quererá do mundo, Rangel o Incontentável?”

Depois de uma pausa entre as cartas, a ironia de Lobato:

“Viva o ressuscitado! Eu já andava compondo um “Adonais” para o extinto juiz e eletricista de Santa Rita do Sapucaí!”

Lobato demonstra que valoriza a amizade entre os dois neste trecho:

“Eu havia deliberado não escrever a ninguém nesta minha visita ao mar, nem ao administrador lá da fazenda, nem a você, nem ao papa. E conservei-me nesse propósito, até hoje, quando o correio me trouxe a sua. Por Netuno! Que redada de cincas de gramática de má morte, ó Cândido de Figueiredo de Santa Rita do Sapucaí! Dou as mãos à palmatória. E dou-me os parabéns de conhecer no mundo um crustáceo tão meticuloso como o meu amigo juiz.”

Quando Rangel termina seu romance “Vida Ociosa”, a-inda em Santa Rita, Monteiro Lobato não consegue esconder sua admiração a Rangel e até faz um convite ao amigo:

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República Minarete

“Acabo de ler a última parte de “Vida Ociosa” e corro ao papel para que nada se perca no calor da primeira impressão. Confesso que as partes anteriores me deram suspeita de que, em vez de um romance com desenlace, a coisa saísse como uma simples crônica da vida roceira. Enganei-me. Parabéns! Enfim, Rangel, estás consagrado no nosso grupo como o grande romancista que o país esperava – a nossa roda sabe o que diz, e o que ela diz é a opinião de amanhã. Queres negociar comigo a publicação de Vida Ociosa? Monteiro Lobato, editor do Godofredo Rangel – que maravilha!”

Em outro momento, Lobato parece sentir ciúmes da amizade de Rangel com o célebre poeta Pouso-alegrense Menotti Del Picchia:

“Já sou mais velho do que moço e nada me vale este gamão que jogo há mais de dez anos com o meritíssimo juiz de Santa Rita do Sapucaí. Quando me surge um novo que quer andar comigo pelos mesmos caminhos, sinto-me esquerdo, fujo, enxoto-o. Estas veredas, Rangel, têm dono – são só nossas. Há um Menotti que anda querendo invadir a nossa propriedade, esse Menotti de que tanto me falas. Estou com ciúmes. É um braconnier, senhor juiz! Está violando o nosso Paradou.”

Nesse trecho, Lobato refere-se de maneira irônica a Santa Rita, como um lugar intocado pelos vícios da civilização:

“E tu, homem feliz, poço de bom senso, virgem incontaminada que trocas esse empíreo de Santa Rita do Sapucaí pelas escarradeiras cheias de pontas de cigarro que se chamam Centros de Civilização? “

O escritor encanta-se com a obra “Vida Ociosa”:

“A sua apresentação como escritor no jornal Estado de São Paulo operou um efeito siderante. Proclamam agora que és um Machadinho de Assis mineiro. Estás lançado, afinal! Terminei “O saci”. É um livro para crianças, para gente grande ou burra, para sábios folclóricos; ninguém escapa. Depois edito você. Faço tal propaganda de você que todo mundo em São Paulo está de olho em Santa Rita do Sapucaí. Isso aí nem é mais cidadinha mineira: é aquela sarça ardente da Bíblia que Moisés olhava de olho arregalado! Jeovah Shammah!”

Ao comentar sua indicação para a direção da Revista do Brasil, Lobato ironiza a pouca influência dos vereadores santa-ritenses frente ao contexto nacional:

“Na Revista do Brasil querem que eu substitua o Plínio na direção, mas a coisa ainda é segredo. Nada contes aos vereadores de Santa Rita do Sapucaí. Poderia trazer complicações diplomáticas ou ocasionar um desvio na rota de Saturno.”
Neste trecho, mais uma vez, Lobato satiriza a vida monótona que Rangel leva por aqui:

“Oras, viveste longos anos sopitado entre a filarmônica de Santa Rita e o ‘fitar o umbigo’ da vida introspectiva. Estás fatalmente com mais ostras na quilha do que navio alemão internado em porto neutro.”

A seguir, trecho de um bate-papo com o escritor Toffo, grande admirador de Godofredo Rangel:

“Rangel morou em Santa Rita, por volta de 1918. A correspondência entre eles nesse período é muito interessante, primeiro porque parece ter sido um período difícil na vida de Rangel. Não sei se você está a par mas, naquela época, (diferentemente de hoje) as carreiras de Estado, como juiz e promotor, eram pouco valorizadas e os profissionais ganhavam mal. Por isso, Rangel, além de juiz, reforçava o orçamento doméstico como contador da empresa de força e luz da cidade. Lobato menciona esse fato e, inclusive, numa de suas cartas, há uma passagem pitoresca, em que faz uma visita imaginária a Sta. Rita, fingindo bater à porta do amigo e não sendo recebido pela mulher deste, que imaginou ser ele um mascate ou coisa assim. Interessante é que, na época em que li o livro, eu cheguei a fazer uma visita de algumas horas a Santa Rita. Eu vi o prédio do fórum, que é bastante antigo e imaginei que seria o mesmo em que Rangel trabalhara. Cheguei a entrar lá, pensando que talvez ele tivesse pisado naquele assoalho… Depois, dei uma volta pela cidade, tentando encontrar alguma rua com o nome dele, mas não encontrei. Na época da minha visita, havia muitas casas antigas no centro, e fiquei pensando que talvez ele tivesse morado em alguma delas. Pela correspondência, dá para conhecer toda a gênese de ‘Vida Ociosa’, a obra-prima de Rangel que tem tudo a ver com Santa Rita. Em alguns aspectos, você pensa estar lendo Lobato, mas, na verdade, foi Lobato que se influenciou do estilo dele.”

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