(Carlos Romero Carneiro)
Nossa amizade começou de forma espontânea. Eu dei uma espiada na antiga Choperia “Parada Obrigatória”, Aninha Bold me viu e me convidou para entrar. Como não encontrei nenhum conhecido, disse que iria embora, mas ela insistiu.
Pois a Aninha, ou Palmirinha, me apresentou um sujeito que acabara de chegar à cidade e que estava dando as caras no bar, às quartas-feiras, dia em que havia rodízio de comidas de boteco. Miguel Andery estava bem acima do peso, tinha pose de empresário e retornou a Santa Rita, sua terra natal, para abrir um negócio, depois de se cansar da correria da capital paulista. Formado na ETE, era dono de uma bem sucedida empresa que prestava assistência a máquinas de fliperama e caça-níqueis e teve que buscar alternativas, quando ambas as atividades miaram. Era um sujeito seguro de si, falava alto e ficamos amigos instantaneamente. Daqueles meados de 2015 em diante, nos veríamos com frequência. Ora no Parada, ora na Choperia Castelinho, conversávamos sobre amenidades e Miguel fazia amizades aos punhados, com o seu jeito gentil e expansivo de ser.
Um ano depois, ele começou a se preparar para montar um empório. O filho de comerciantes libaneses, povo com características nômades e melhor do que ninguém na arte de comercializar produtos, tinha bons contatos com os estabelecimentos paulistas. Ele alugou um ponto na praça, quase em frente à igreja, projetou o espaço e comprou mesas, bancadas, freezers e expositores. Foi bonito de ver, se não me engano num domingo, pessoas se aglomerarem à porta do Armazém Andery para consumirem produtos difíceis de se encontrar por aqui. De uma salinha, nos fundos da galeria, Miguel migrou para outra, de frente para a rua, montou mesinhas no corredor e aumentou o fluxo de pessoas naquele espaço.
Passava por ali uma variedade de fregueses que buscavam os seus queijos, frios, bacalhau ou cervejas artesanais. As pessoas também apareciam em busca dos deliciosos doces sírios, paravam para um cafezinho e um pão de queijo, se deliciavam com as empanadas argentinas e o local virou ponto de convergência de quem queria conversar ou fazer uma pausa no dia. Eu estava em um momento complicado da minha vida. Havia acabado de perder o emprego, andava triste, minha esposa estava trabalhando fora do Brasil, mas não perdia a oportunidade de bater ponto para uma conversa com o meu novo amigo e de parar para um café ou uma Amstel.
Em um momento de crise no país, o valor do aluguel aumentou para além das possibilidades do comerciante e ele buscou novos ares. Um restaurante havia acabado de fechar as portas e Miguel decidiu montar um negócio mais ousado, com armazém, choperia e restaurante. Apesar dos meus vários apelos para que não deixasse a praça, o homem estava radiante com o novo empreendimento. Havia usado o restante das suas economias para ampliar o espaço e deu início ao “Taverna”, ambiente com shows, cerveja e tira-gosto.
Depois de um tempo, a sociedade que montou não deu certo, ele teve que reavaliar a rota e chegou a pandemia. Seria um momento de readaptação e parecia difícil convencer o meu amigo a vender por aplicativo. Até então, a maneira que conhecia de fazer negócio era no presencial, olho no olho, nariz no nariz. Nariz avantajado, como todo bom turco. “Turco, não! Libanês!”
E as coisas começaram a ficar mais difíceis para o Miguel. Ele buscou empréstimos, vendeu o seu carro, passou a atuar com delivery e priorizou o armazém.
Como se não bastassem as dificuldades impostas pela mudança de vida e pela pandemia, o seu estabelecimento recebeu uma visita inesperada numa madrugada daquelas. Um sujeito entrou pela janela lateral e limpou o armazém. Miguel ficou arrasado. Naquela altura, já não queria permanecer naquele local. No meio da quarentena, procurou um ponto mais barato, alugou o espaço da antiga choperia Castelinho, continuou com as entregas de refeições e recebia os clientes que ousavam guardar as suas máscaras em um saquinho plástico e tomar uma cerveja seguindo as suas rígidas regras de prevenção. Outro baque… Eu também tinha sido obrigado a fechar as portas de uma escola que abri em Pouso Alegre e, à noitinha, passava no castelinho para trocar ideia e tomar uma cervejinha.
No final da pandemia, Miguel tinha perdido tudo o que investiu, mas nunca perdeu a alegria. Estava visivelmente castigado, mas seguia em frente com o seu bom humor. Vez ou outra, eu o acompanhava aos bailinhos que ele adorava. E, com malemolência, ele virava o centro das atenções. Dançava com tudo que era mulher, mexia com quem passava e só saía do salão quando a faxineira passava o rodo. Cansei de ouvir as suas façanhas… Quem o conheceu, sabe que ele não brincava em serviço.
Depois de muito resistir, Miguel decidiu fechar as portas e atender somente por delivery. Ele precisava recolher os cacos, saldar os pesados empréstimos e recomeçar a vida. O comerciante nunca perdeu a garra… Montou uma cozinha nos fundos de casa, ganhou prática nos fogões e era ajudado por sua nora, a Dani, que esteve ao seu lado desde os tempos do empório, na galeria. Teve que recuar, mudou o cardápio e sofreu muita dor de cabeça até encontrar bons motoboys. Mais de uma vez, eu saí de carro para fazer as suas entregas, angustiado com a situação de ver o homem preparar os pratos e não ter alguém para fazer o delivery.
Com o apoio do filho, ele precisou dar um passo atrás, mas o quintal de sua casa passou a ser o meu restaurante particular, espécie de clube secreto onde pouquíssimas pessoas tinham acesso. Somente duas mesas. Eu não ia por causa da cerveja. Batia ponto no estabelecimento para conversar com ele, pedir conselhos e comentar sobre nossas alegrias e tropeços. Poucas pessoas sabiam tanto da minha vida quanto o Miguel e era praxe um encher o saco do outro até o limite do aceitável. Além de mim, quatro ou cinco pessoas frequentavam o seu boteco. Conheci, naquele ambiente, um boliviano doidão e inteligentíssimo que gerenciava a produção de uma grande multinacional; recordei os velhos tempos de carnaval com o Maurinho e, aos sábados, aproveitei a sapiência e generosidade do meu querido amigo, doutor Élcio Murad, outro integrante da “Colônia Turca”.
Com o tempo, percebi que o Miguel parecia cansado. Ele dizia que, em cinco anos, estaria livre dos bancos, restringiu as suas saídas para as noites de sábado, sem tirar a atenção das panelas e dos motoboys que lhe davam um trabalho absurdo. Ele parou de namorar por não ter tempo para curtir a vida, emagreceu bastante e começou a postar imagens motivacionais sobre coragem, lutas e fé que, no fundo, eram endereçadas a ele mesmo.
Em sua última semana por aqui, eu ainda não tinha passado por lá nenhuma vez e senti falta do meu amigo. Tive que trabalhar à noite por vários dias e não encontrei tempo de tomar uma cervejinha que ele buscava no bar da esquina por não ter estoque. Havia encontrado o Miguel na semana anterior… Eu soube, com um dia de atraso, que ele havia comemorado aniversário, passei por lá para lhe dar os parabéns e ele fechou o aplicativo de entrega para que pudéssemos tomar uma e colocar a fofoca em dia. Não lembro sobre o que conversamos, mas foi o trivial.
No fim da tarde de sábado, dia 13 de abril, eu estava no Tio João com um amigo quando algo me fez lembrar do Miguel. Eu disse ao comparsa que ele precisava conhecer o libanês, tentei ligar em seu WhatsApp, mas não atendeu. Nós pagamos a conta, fomos à sua casa, mas estava tudo escuro em seu quintal. Imaginei que tivesse ido a alguma festa… Sua irmã atendeu o interfone, disse que ele havia se sentido mal e que estava internado. Cacei uma mesa, na pracinha do Kridão, liguei várias vezes, até que o seu filho atendeu. “Meu pai acabou de falecer”.
Fiquei sem chão. Lembrei, como em um filme, da sua alegria no Bloco dos Democráticos, suas brincadeiras e risadas. Soube, naquele instante, que havia perdido um dos meus melhores amigos. O segundo irmão, em menos de um ano. Quando peguei o atestado de óbito, vi que ele partiu no exato momento em que senti vontade de encontrá-lo. Partiu meu conselheiro, amigo, sujeito com quem dividi tantas dificuldades e conquistas e com quem podia sempre contar. Não iria mais zoar o seu uniforme que parecia um pijama, sua teimosia e nem ser alvo de suas brincadeiras.
Vai com Deus, Miguel. A vida o derrubou, mas a eternidade irá reerguê-lo e a nossa amizade permanece sólida como aquele seu bife de alcatra. Hoje eu ouço “Sentinela” mas, qualquer dia, vou ligar a minha caixinha de som para tocar aquelas musiquinhas de axé que você gostava. Meu brinde será a você. Juízo, narigudo.